Quebrando computadores


Nghiem Xuan HungA sala de informática estava perfeita e todas as máquinas funcionando normalmente, mas ninguém podia entrar nela sem um projeto pedagógico sofisticado sobre o uso dos computadores na educação, previamente analisado e aprovado pela coordenação, pela direção, pela supervisão e, talvez, por Deus em pessoa. Também não se poderia entrar nessa sala sem um treinamento que qualificasse o professor como “entendido em computador”, sem que ele assumisse a responsabilidade pela integridade de todas as máquinas, sem que tivesse sido estabelecido antes um roteiro gigantesco de regras para si próprio e para os alunos, sem a presença de monitores e outros ajudantes para fiscalizarem os alunos e o professor e, ainda assim, mesmo cumpridas todas as formalidades e condições, talvez não se conseguisse as chaves das duas fechaduras e três cadeados da sala de informática. Afinal, era preciso garantir que ninguém quebrasse os computadores.

A situação descrita acima é real e, em maior ou menor grau, ela se verifica na maioria das escolas públicas e particulares. Há um “medo consensual” de que os computadores sejam quebrados, por vandalismo puro e simples ou por “desconhecimento do usuário”. E à sombra desse medo e dessas dificuldades criadas em seu nome, muitas salas de informática continuam fechadas ou subutilizadas por todo o país. A impressão que se tem é que a simples existência física de uma sala de informática (ou “laboratório de informática”) já coloca a escola na vanguarda da Educação, e que seu uso deva ter um papel secundário.

O “vandalismo” dos alunos e a “ignorância digital” dos professores podem realmente existir algumas vezes e em alguns locais, mas será que o vandalismo e a ignorância digital são mesmo boas justificativas para se manter as salas de informática fechadas durante a maior parte do tempo?

Na verdade, o vandalismo não ocorre às claras e dificilmente um aluno abriria uma CPU (*1) para danificar uma placa do computador no meio de uma sala com mais vinte ou trinta alunos e na presença do professor. Quando algum vandalismo ocorre, ele geralmente se dá às escondidas e seus autores nem sempre são os alunos que utilizam os computadores. Mas ainda assim teme-se que seja possível que o aluno “quebre o computador sem abri-lo” e de forma proposital, numa espécie de “vandalismo de hacker” ou algo parecido.

Da mesma forma, inúmeros diretores, coordenadores pedagógicos e professores temem que eles mesmos quebrem o computador ao usá-lo, ou que, não entendendo muito sobre seu funcionamento, permitam que os alunos quebrem-no ao executar uma “tarefa proibida” qualquer.

Mas será que é mesmo tão fácil assim quebrar um computador? Você, meu leitor querido, sabe como quebrar um computador usando apenas comandos por meio do teclado ou do mouse? Quantos computadores você já “quebrou” apenas fazendo uso normal dos programas comuns que utilizamos em nosso dia–a–dia?

Se você realmente quiser “quebrar” um computador poderá fazê-lo derramando água dentro dele, mexendo em seu interior com ele ligado, instalando placas e componentes incompatíveis entre si ou, simplesmente, chutando a CPU ou dando marretadas no vídeo, por exemplo. Mas falando sério, se você quiser mesmo quebrar um computador dessa maneira, quem poderá detê-lo?

Também há outras formas mais sofisticadas de causar danos ao hardware usando apenas “instruções de software” como, por exemplo, provocar um overclock (*2) sem um cooler (*3) apropriado, alterar a taxa de freqüência de varredura do vídeo para um valor que seu monitor não suporte, instalar drivers (*4) errados para o HD (*5), alterar o bios (*6) da placa–mãe com uma versão incompatível etc. Mas qual dessas tarefas é “rotineira” na sua vida de usuário de computador?

Todo mundo que eu conheço que “sabe quebrar um computador digitando comandos” também conhece muito bem a “eletrônica” de seus componentes e é capaz de montar e desmontar um computador quase de olhos vendados. Porém, usuários assim especializados gostam muito de computadores e reconhecem sua utilidade e a importância de mantê-los inteiros. Logo, não são “naturalmente vândalos”.

De fato, a única coisa que se pode fazer para danificar um computador, “sem ter a intenção explícita de quebrá-lo e nem os conhecimentos necessários para isso”, é fazer aquilo que todos nós já fizemos ou faremos um dia: desconfigurá-lo.

Desconfigurar um computador é muito fácil, assim como também é muito fácil reconfigurá-lo. Desconfiguramos um computador quando alteramos as instruções de funcionamento do sistema operacional, quando apagamos ou substituímos arquivos do sistema, drivers ou informações do “registro” ou, ainda, quando algum programa faz isso sem nos avisar. E isso pode ser feito de muitas formas, intencionalmente ou não. Mas desconfigurar um computador não é o mesmo que quebrá-lo.

Quando um computador é seriamente desconfigurado ele se torna inoperante até que seja reconfigurado. Nesses casos muitas pessoas confundem o “computador inoperante” com um “computador quebrado”. É daí, na verdade, que nasce “o grande medo de quebrar o computador”. Mas quanto a isso não há muito a fazer, pois até mesmo usuários avançados vez por outra “desconfiguram” seus computadores. Além disso, alguns programas têm “bugs” (*7), que causam deconfigurações sem que o usuário queira ou saiba o que esteja ocorrendo, e não é raro na vida de qualquer um que use computadores ter de “reinstalar todo o sistema operacional”.

Assim, parece claro que “usar o computador”, independente de quem o utilize e não importando o propósito, sempre cria um risco de desconfiguração e, uma vez desconfigurado, o computador pode se tornar inoperante até ser reconfigurado. O medo de que os alunos quebrem os computadores é, na verdade, o medo de que eles “desconfigurem intencionalmente esses computadores”, já que os alunos geralmente sabem muito mais sobre computadores do que seus professores. Para educadores, coordenadores e diretores que não compreendam bem essa diferença, tanto faz se o computador foi realmente quebrado ou apenas desconfigurado porque, de qualquer forma, ele parou de funcionar como deveria.

Mas espere um pouco! Se não queremos computadores desconfigurados porque eles não podem ser usados até serem reconfigurados, então por que impedirmos que eles sejam utilizados quando configurados? Não é verdade que, de uma forma ou de outra, eles ficam “inoperantes”?

Uma saída para esse dilema, e talvez a melhor delas, consiste justamente em usar o computador o mais possível, fazendo com que ele realmente “funcione” e, se possível, mantendo alguém disponível para reconfigurar o computador quando necessário. “Impedir o uso do computador” não significa protegê-lo, mas sim uma forma definitiva de “quebrá-lo”, porque, um computador na sala de informática de uma escola só se justifica se servir ao aprendizado dos alunos. Computadores desligados não são ferramentas pedagógicas, são apenas tralhas caras, que dão uma falsa idéia de modernidade à escola.

A escola sempre pode chamar um técnico ou um monitor para “reconfigurar” seus computadores, mesmo que esse técnico seja um professor ou um aluno que saiba reinstalar o sistema operacional e os programas básicos. É claro que isso acarreta “algum serviço extra” e estimula a “delegação de poderes e responsabilidades”, inexistentes quando os computadores não são utilizados. Talvez por isso a solução mais comum para o problema seja essa: se ninguém usar, não vai quebrar.

Também não se pode esperar que, para qualquer equipamento que tenhamos –  em casa ou na escola – seja possível dispensar completamente os serviços de manutenção. Assim como o pessoal da limpeza tem de cuidar dos banheiros todos os dias, repor as toalhas de papel e tirar a poeira das carteiras, também é preciso reconfigurar computadores, reinstalar programas e fazer a “limpeza dos HDs”. Se a filosofia do “não usar para não quebrar” fosse aplicada em outras áreas ninguém poderia, por exemplo, usar o banheiro, pois além de “gastar papel higiênico e água” também existe o risco de alguém jogar papel higiênico no vaso sanitário.

Um computador, ao contrário de um videocassete ou de um televisor, é um investimento alto e de rápida depreciação. Por isso, mantê-lo ocioso é o mesmo que jogar dinheiro fora. Computadores que há três anos eram de última geração rapidamente tornam-se obsoletos e precisarão ser substituídos daqui dois anos, no máximo. O mesmo vale para vários softwares, tais como sistemas operacionais e pacotes de utilitários. A indústria da computação vive de novidades e não há como compatibilizar isso com práticas ociosas referentes ao uso dos computadores.

Para se ter uma idéia do custo do desuso dos computadores, uma sala bem simples com apenas 12 computadores “baratos” (R$ 1.500,00 cada um), sem contar os demais equipamentos, atualização de softwares e o custo de instalação, tem depreciação média de R$ 18,00 por dia letivo! Portanto, se essa sala não for utilizada duas vezes por semana, ao final do ano letivo, R$ 720,00 foram pelo ralo, ou seja, praticamente “meio computador”. Mais um exemplo:  se a sala for utilizada apenas quatro vezes por mês, ao final de um ano terão sido jogados pela janela R$ 2.880,00, quantia suficiente para a compra de dois computadores.

O mais grave disso tudo não é a depreciação demonstrada anteriormente; o mais grave é não permitir ao aluno a experimentação de novas situações de aprendizagem sob a alegação de que “o aluno poderá quebrar os computadores”. Esse custo é muito mais difícil de ser transformado em “números”, mas certamente não será preciso calculá-lo para concluir que ele é bem maior do que o custo de “manutenção” dos computadores.

Glossário:

(*1) CPU: “Unidade Central de Processamento” do computador. Atualmente CPU é sinônimo, para os leigos, de tudo aquilo que está contido no “gabinete” do computador.
(*2) Overclock: aceleração da freqüência de operação do processador ou de algum componente controlado pelo “clock” do computador.
(*3) Cooler: sistema de refrigeração, que consiste de um pequeno ventilador e um dissipador de calor.
(*4) Driver: programa utilizado para controlar dispositivos periféricos como HDs, impressoras, placas de vídeo etc.
(*5) HD: Disco rígido.
(*6) Bios: Programa básico armazenado na memória permanente do computador, responsável por “iniciar” o computador mesmo antes do sistema operacional ser carregado na memória.
(*7) Bug: Defeito em um programa de computador.

(*) Para citar esse artigo (ABNT, NBR 6023):

ANTONIO, José Carlos. Quebrando computadores, Professor Digital, SBO, 30 jun. 2008. Disponível em: <https://professordigital.wordpress.com/2008/06/30/quebrando-computadores/>. Acesso em: [coloque aqui a data em que você acessou esse artigo, sem o colchetes].

14 comentários sobre “Quebrando computadores

  1. […] usando-a” (sobre esse tema, “estragar usando”, veja um artigo meu de junho de 2008, “Quebrando computadores“, que tratava justamente da questão da falta de uso dos computadores da sala de informática sob […]

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  2. É possível configurar as permissões do usuário nas máquinas, ou seja, é possível definir quais recursos os usuários podem manipular na máquina, pode-se permitir que o usuário altere configurações ou pode-se negar essa permissão. Assim, é possível minimizar problemas quanto à configuração de máquinas. É óbvio que essa configuração é algo que deve ser feito por alguém da área de informática.
    A respeito da preservação do hardware, acidentes acontecem e nesse ponto concordo que não é intessante colocar restrições a ponto de atrapalhar a continuidade do estudo dos alunos em laboratório

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  3. […] Blog Professor Digital Diário virtual com orientações e reflexões sobre o uso da tecnologia mantido pelo professor José Carlos Antônio da EE Professora Neuza Maria Nazatto de Carvalho, em Santa Bárbara do Oeste, em São Paulo. Confira o texto “Quebrando computadores” no qual o professor fala sobre os laboratórios de Informática fechados. […]

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  4. A realidade descrita acima, infelizmente ainda ocorre em vários campos da educação, principalmente quando os próprios professores não se preocupam em se atualizar e ficam com medo de utilizar de forma errada ou mesmo danificar suas máquinas por não saber manuseá-las direito. Impedir o acesso do aluno ao laboratório de informática pode ser considerdo um crime, pois, o aluno geralmente já tem esse contato em casa ou lan houses e, talvez saiba utilizá-lo melhor que seu próprio professor. Sem contar que o período útil de um computador hoje em dia é muito curto, visto que a cada ano surgem máquinas mais potentes e sofisticadas.

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  5. Conheço bem essa realidade, pois no inicio quando chegaram os computadores na escola em que trabalho, era tal e qual a reação daqueles que sabiam o manuseio da ferramenta. Ninguém podia tocar para não “quebrar” os equipamentos. Caminhamos uma longa estrada até finalmente chegar ao laboratório que temos hoje, onde é muito bem frequentado e bem utilizado, tanto por professores quanto pelos alunos. O quadro descrito acima é real,sim, infelismente ouvimos muitos depoimentos a respeito ainda. Torcemos para que essa cultura mude.

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  6. O que ocorre que muitos tem medo que essa inovaões nos substituam.Porém só será subistituido aquele que não adaptar-se as novas teconolgias ,não inovar educaionalmente não faaler a lingua dasociedade tecnológica,virar dinossauro educacional arraigado as tecnicas de nesiniar do cuspe e giz.
    Mas muitas escolas ainda não estão preparedas, não possuem computadores,ou possuem direções de uso equivocadas. Precisamos fazer com que não sóas escolas ensino fundamentalII( de 6º ao 9º ano )mas também as de ensino fUndamental I(1º ao 5ºano) tenham acesso a tecnologia,dandolhes inserção no 3º milenio e educação de qualidade

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  7. “Quebrar” o computador é coisa de louco. A deficiência, tanto do professor, quanto do aluno, do gestor, do pessoal de apoio, da Secretaria de Educação – especialmente (e infelizmente) do professor pode ser sanada quando, do planejamento da sua aula, fazer uma triagem entre seus próprios alunos, aqueles que “sabem/conhecem” informática – estabelecer parceria professor-aluno – Além de “encantá-lo”, você terá mais um “professor” do seu lado.

    Abraços

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  8. Entendo e concordo com seu ponto de vista. Uma vez entretanto, quando ainda se utilizavam os mouses com aquela “bolinha”dentro (não sei o nome correto dele), vi acontecer em uma escola onde meu irmão estudava: os alunos (de classe média alta!) simplesmente “colaram” todas as bolinhas… Vandalismo puro, eu sei, mas eu acho que o temor dos diretores fica mais nesta seara…
    Beijos

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